Saturday, December 29, 2007

NA ERA DO CIMENTO, DOS REIS E DOS VALETES

Comemora-se, hoje, o Dia Mundial da Diversidade Biológica. Para muitos é um dia insignificante, mais um daqueles que se inventam por aí, mais um que não serve absolutamente para nada a não ser para exclamar “hum, hum” quando, acidentalmente, nos cruzamos com um folheto, um poster ou uma notícia minúscula num jornal regional. Na verdade, a diversidade biológica não interessa a ninguém. O facto de se extinguirem 27 mil espécies por ano não afecta em nada a nossa vida e o nosso bem-estar. O facto de existirem mais de 15 mil espécies de animais e 60 mil espécies de plantas em perigo de extinção não nos tira o sono e muito menos o orgulho medieval de termos lá por casa qualquer coisa feita de qualquer coisa exótica muito cara e muito rara. É que os corais dão excelentes centros de mesa. E as cascas de tartaruga ficam muito bem sobre o aparador da sala. Já a pele de zebra encaixa perfeitamente no hall de entrada. E no escritório, aquela mobília feita de madeira da Indonésia fica simplesmente perfeita. O facto de, lá longe, a diversidade biológica ser cada vez menos diversa não nos incomoda minimamente. Longe da vista, longe do coração. Suficientemente longe para não fazer parte das nossas preocupações quotidianas. Convenhamos. Porque deveríamos nós chorar todos os dias pelo desaparecimento de algumas plantas em Tuvalu, um mísero e insignificante atol do Pacífico? E por umas plantas? É mesmo isso. Longe da vista, longe do coração. O que faz com que a nossa perspectiva seja um tanto solipsista. A única realidade somos nós próprios e tudo o que há à nossa volta simplesmente não existe, é irreal. Mesmo a consciência não passa de um subproduto dos media. O que faz de nós, inevitavelmente, uns cretinos. É precisamente por essa razão que vamos todos comprar a Agenda Verde 2008 da National Geographic porque é gira e barata e tem umas fotografias de bichos excepcionais mas pouco nos interessa que diga que os gorilas são uma das muitas espécies em risco de extinção por causa da destruição das florestas tropicais pelo corte ilegal e pela pressão da agricultura. Mas será que está tudo perdido? Eu acho que não. Não só porque o homem nunca irá viver num mundo feito à sua imagem mas porque talvez um dia descubra que o mundo, precisamente esse mundo que gostamos de sentenciar e lamentar “à beira do fim”, começa à porta da nossa casa. Lembrem-se disto. Começa à nossa porta. Mas, mais importante ainda, é que nós podemos mesmo escolher. E são as nossas escolhas que mudam efectivamente o mundo em que vivemos. Mas se é importante escolher também é importante exigir. É preciso exigir. Exigir com bom senso. Mas exigir. Sem nunca desistir.

Ora, é precisamente isto que não fazemos. Uma parte significativa de nós desistiu de escolher. Pelo menos aquela parte que se abstém de cada vez que há eleições em Portugal, por exemplo. O que faz com que, um dia, sem saberem como, se espantem com o facto de o emplastro ser o primeiro-ministro cá do sítio! E aí já será tarde demais. É por isso que escolher é importante. Mas as nossas escolhas não terão qualquer efeito se não exigirmos. Ao fim e ao cabo, se não exercermos a nossa cidadania. No quotidiano. Exigir é preciso. Mas exigir com bom senso. Quer isto dizer que é um bom princípio preocuparmo-nos com a nossa rua. O caixote que falta. O parque que precisa de novos baloiços. O alcatrão que precisa de ser reparado. Etc. Porque são as pequenas coisas as mais significantes. São as pequenas coisas que realmente mudam o nosso mundo. Porque desistir só fará com que os reis e os valetes façam o seu jogo. Aliás, um jogo em que eles ganham. Só eles ganham.

Um exemplo simbólico de tudo isto é a desistência quase colectiva na luta contra o cimento. Curiosamente, dos esclarecimentos prestados pelo senhor Presidente da Câmara Municipal de Cascais ao movimento Cidadania Cascais (ver aqui), há algo que é transversal a tantos planos de pormenor, obras e projectos de obras. É o cimento. Mais cimento. Aliás, mais de 250 mil metros quadrados de cimento. Tudo em nome do progresso da vila de Cascais e do bem-estar e da qualidade de vida dos seus habitantes. É claro que se trata de uma falácia. Porque o primeiro critério e o primeiro fim é económico. Mais hotéis e mais comércio não trazem um nanómetro sequer de bem-estar e qualidade de vida a quem vive em Cascais. Aliás, para quem vive aqui, o cimento que se despejou nos últimos anos à nossa volta só trouxe um refluxo esofágico crónico de tanta má disposição. Apenas isso. As estradas continuam uma miséria como sempre estiveram. Continuo a pagar o IMI como sempre paguei. A luz de vez em quando falta. Às vezes detecto um cheiro a lixo vindo dos lados de Trajouce. O verde deixou de fazer parte da paisagem. Continuam a enganar-me enviando para casa folhetos anunciando os novos espaços verdes da freguesia mas que não passam de reles rotundas relvadas. As “vivendas” de dois andares passaram a ter quatro embora continuem a ter oficialmente dois. Etc.

O que tem isto a ver com a diversidade biológica? Nem imaginam o quanto! Porque a era do cimento é silenciosa. E poderosa. Só assim se compreende que uma fábrica de cimento esteja localizada em plena reserva natural, na serra da Arrábida, e ninguém ache isto estranho. Eu muito honestamente acho isto satírico. Uma piada de mau gosto, se quiserem. Uma fábrica de cimento num parque natural que tem uma fauna e uma flora excepcional, alguma exclusiva, só pode ser uma piada. E a cretinice é tanta que os senhores do cimento não se coíbem de por à entrada da fábrica um cartaz gigantesco a anunciar o número de árvores que já plantou, numa de “olhem só para nós, tão amigos da natureza e da diversidade biológica”. Por isso, vejam bem se foi realmente este o mundo em que escolheram viver. E se não foi, por favor, façam alguma coisa. Porque, às vezes, o importante é mesmo fazer.

*Até 2008! E boas entradas*

Imagem: (c) Alexandre Garcia, Fábrica de Cimento em Perus, 1930, daqui.

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