Cascais, que tem mais de meia centena de condomínios fechados e se prepara para produzir mais, é um dos concelhos em análise num estudo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa:
“Viver num condomínio privado muda os comportamentos políticos?”
in Público, 24.08.2008
Natália Faria
“Porque a segregação promove a intolerância, sociólogo do Instituto de Ciências Sociais diz que autarcas têm que começar a pensar nas consequências políticas dos condomínios fechados
Um indivíduo que mora num condomínio privado tem práticas de participação política diferentes de alguém que vive num aglomerado social? E os autarcas podem, através da organização do espaço urbano, influenciar o comportamento político dos cidadãos? O sociólogo Filipe Carreira da Silva, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, acredita que sim. E por isso lidera uma equipa de investigadores que está a estudar a influência da metrópole na participação política, num projecto intitulado Cidade e Cidadania em Portugal.
"Nós sabemos que o rendimento, o sexo e a religião têm importância no comportamento político dos cidadãos, essas são as variáveis clássicas para perceber como votam as pessoas. O que estamos a fazer, pela primeira vez em Portugal, é estudar de que modo é que a variável espaço, o local de residência ou de trabalho das pessoas, tem influência sobre isso", adiantou Carreira Dias.
O sociólogo acrescenta que "o facto de se viver numa cidade promove a cidadania, não em termos de afluência às urnas, mas enquanto conjunto de direitos reclamados por via de manifestações, comícios, participação em fóruns e em sindicatos".
Os investigadores propõem-se, através desta análise da influência do espaço cidade na participação política dos cidadãos, fornecer pistas sobre como deve ser feita a governação de uma cidade, nomeadamente ao nível do planeamento urbano. "Não é à toa que muitos colegas desta área de investigação nos Estados Unidos trabalham como consultores do poder local", lembra Carreira Dias.
Segmentação do território
O projecto - financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e com conclusão aprazada para 2010 - incide sobre os 18 concelhos da Área Metropolitana de Lisboa. E, no caso de Cascais, os investigadores vão comparar os valores políticos dos residentes em condomínios fechados por oposição aos habitantes dos bairros sociais.
"Em Cascais existem mais de 50 condomínios privados, e os autarcas têm que começar a, quando aprovam a construção de mais um desses condomínios, ter consciência das consequências políticas que daí advêm".
E que consequências são essas? "Cria-se um problema de segmentação do território, em que as pessoas tendem a agrupar-se com outras que pensam da mesma maneira. Essa ausência de confronto com os outros, a falta de exposição a opiniões diversas, torna-as menos democráticas e tolerantes", responde Carreira Dias.
Em Portugal, essa realidade não está estudada. Mas lá fora, sim. "Há estudos nos EUA e no Brasil que indicam que é essa a realidade, numa tendência que é contrária à ideia de cidadania, à luz da qual todos os cidadãos são iguais perante a lei". O investigador não hesita ainda em afirmar que "ao permitir que as pessoas se enclausurem por detrás de muros, numa tendência muitas vezes motivada por um sentimento de insegurança desproporcional à criminalidade, os autarcas estão a criar obstáculos à partilha da cidadania".
Apontando o exemplo de S. Paulo, onde a segregação económica é muito mais marcada, o investigador do ICS recorda que naquela cidade brasileira "há uma geração inteira que nunca conviveu com a pobreza e com o diferente: crianças que nascem em condomínios a que só têm acesso pessoas do mesmo extracto social e que não saem dali porque ali tudo existe: desde a igreja ao centro comercial, passando pelos empregos".
Aliás, "esses paulistanos pagam ao condomínio mais do que pagam ao Estado brasileiro em impostos", nota, para concluir que o desafio que se coloca hoje aos autarcas portugueses é precisamente perceber que "não é de todo indiferente permitir--se a construção de um condomínio ou de um bairro social do ponto de vista do comportamento político dos cidadãos".
Arrendamento pode evitar novas "Quintas da Fonte"
É à luz da tendência segregacionista que se traduz na adesão cada vez maior aos condomínios privados que o sociólogo Filipe Carreira Dias analisa as reacções que se seguiram aos desacatos ocorridos em meados de Julho na Quinta da Fonte (Loures).
"À esquerda, houve quem defendesse que uma solução seria os bairros sociais desaparecerem e os seus habitantes espalhados pela cidade; à direita, houve quem dissesse que o problema se colocava ao nível da responsabilidade individual." Na sua opinião, nem uma coisa nem outra.
Quanto à responsabilidade individual, "o ciclo de pobreza afecta gerações da mesma família, logo há aqui um processo de reprodução social, e, por outro lado, a percentagem de pessoas que cometem fraudes com o Rendimento Social de Inserção é equivalente à de pessoas que não pagam impostos, pelo que não se pode olhar para ali como se se tratasse de um grupo de malandros que quer aproveitar-se do Estado".
Quanto a disseminar as populações pela cidade, Carreira Dias confirma que é o que se passa, por exemplo, em Inglaterra, onde a lei prevê que uma percentagem das habitações de qualquer condomínio seja para fins sociais: "É uma forma de mitigar o problema." Mas não é solução que atenda à realidade de aglomerados como o da Quinta da Fonte, porque "pegar numa comunidade cigana, cabo-verdiana ou caucasiana e pulverizá-la pela cidade é absolutamente não-democrático".
A solução "está na escola". Mas, "como a aposta na educação é de longo prazo e as pessoas precisam de comer hoje, o Estado tem que manter as suas funções sociais". E, já agora, de promover o mercado de arrendamento, de maneira a que as pessoas "que começam a sua vida activa e que têm uma enorme dificuldade em comprar casa deixem de ser empurradas para os subúrbios". N.F.”