Friday, December 07, 2007

Recomeçamos. Não nos rendemos.

É um bocadinho grande. Mas acho que vale a pena. Trata-se de um excerto de um livro de Lars Gustafsson absolutamente delicioso (e simbólico), intitulado “A Morte do Apicultor”. Para ser lido durante o fim-de-semana.

«Foi uma vida bastante tranquila. Sim, tranquila – idílica, nem mais nem menos, anos a fio. Mudámo-nos várias vezes, sempre na província de Västmanland, trabalhámos como professores em diversas escolas, redecorámos vários apartamentos de serviço, que ficaram bastante agradáveis, com os tapetes feitos por ela e os armários e outras coisas que eu próprio fabricava nas salas de Trabalhos Manuais.
Talvez tenhamos mudado de casa muitas vezes. E sempre preferimos o campo – era uma espécie de estilo de vida. Vivíamos os dois numa certa forma de protesto (bastante vago) contra a sociedade. O protesto da hortazinha, por assim dizer. Protesto contra a sociedade industrial, contra…
Já não me lembro muito bem. É estranho, mas actualmente, cada dia que passa aumenta a distância daquele tempo: as coisas que ocupam o primeiro plano são outras, completamente diferentes. O canto de um melro junto à minha janela quando acordo, um pouco mais além as gralhas pousadas nas árvores, uma gota de água num ramo, a meio do dia, quando começa o degelo. Tudo isto surge agora sob uma luz diferente e tudo o que está para trás parece insignificante.
Ela estava sempre a fazer tapetes. Quando mudávamos de casa, o tear era sempre o mais difícil de desmontar e de montar novamente. No último apartamento que tivemos, ficava tão perto do tecto que praticamente lhe tocava. Era ela que tingia as fibras, fabricando os corantes com plantas, como antigamente.
Em Uppsala eu tinha tido uma vida bastante agitada, de raparigas, copos e dívidas. Este estilo de vida neo-orgânico no campo era uma forma de romper com isso.
É certo que também tinha o seu quê de romântico, talvez até anarquista. Nem eu nem ela gostávamos das autoridades, do centralismo, da transferência massiva de pessoas do seu meio natural para os subúrbios impessoais e arregimentados das grandes cidades.
Abominávamos as autoridades escolares, que nem sequer investiam o dinheiro de que dispunham em tornar os pátios das escolas mais agradáveis e alegres e preferiam gastá-lo em esculturas pretensiosas. Passámos muitos pequenos-almoços a censurar a fusão de municípios, o encerramento de escolas de província e o abate de árvores, que demonstravam muito claramente que toda aquela região era tratada como um reservatório de matérias-primas, uma espécie de despensa onde era só ir buscar as coisas e mais nada.
Quero dizer: tudo isto eram realidades, eram coisas que tinham verdadeiramente significado para nós, num plano muito prático e palpável. Talvez houvesse também uma réstia de snobismo, um certo sentimento de superioridade, de entender melhor do que os outros o que tudo aquilo na realidade significava.
Mas era também outra coisa: era como que a nossa coesão interna. Saber mais do que os outros é um bom elo de ligação.
E nós estávamos ligados: sem sentimentalismo, de uma forma não muito sensual, mas agradável e adequada. Sentíamo-nos como dois solitários que se tinham encontrado, que na própria solidão tinham uma coisa em comum e assim deixavam de ser solitários, porque se tinham um ao outro.
Mantermo-nos juntos era uma maneira de dizer:
Recomeçamos. Não nos rendemos.»

*Bom fim-de-semana*

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