Tuesday, July 17, 2007

Assombrações


Em S. João do Estoril, numa modesta casa à beira da Marginal, apontada como palco de assombrações, funcionou um dia uma das principais instituições de apoio a invisuais em Portugal: foi em 1912 que o Instituto de Cegos Branco Rodrigues aí se instalou a título definitivo, após doação de um terreno privado para esse fim. Essa casa, que ainda existe, é hoje uma sombra do que foi, não obstante o trabalho que o seu patrono, José Cândido Branco Rodrigues, desenvolveu como professor e pedagogo em prol da dignificação dos cegos, em particular dos de menores recursos, na transição dos séculos XIX para XX.

Nas várias escolas que fundou - escreve José Salgado Baptista, em A invenção do Braille e a sua Importância na Vida dos Cegos -, Branco Rodrigues procurou sempre dotá-las de “bibliotecas braille, literárias e musicais, quer adquirindo livros impressos no estrangeiro, quer promovendo a sua produção por transcritores e copistas voluntários”. O seu trabalho acabaria por ir mais longe: “Com a colaboração de um habilidoso funcionário da Imprensa Nacional, fez as primeiras impressões em braille que apareceram em Portugal. A primeira impressão foi em 1898, de um número especial do Jornal dos Cegos, comemorativo do IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia”.

No nosso País, como se sabe, nada disto importa. E se, como é usual dizer-se, as casas vão construindo a sua própria alma à medida que o tempo passa por elas, não é de todo improvável que elas próprias se rebelem quando um destino inglório lhes é imposto: após vários anos de abandono, um incêndio fragilizou ainda mais aquela que tem sido apontada como uma das “casas assombradas” de Cascais. Assombrada pelos vivos foi-o certamente ou não estaria em estado precário, vazia e sem uso. Uma nota de esperança, apesar de tudo: a cobertura, que ardera por completo, foi entretanto recuperada.

Nascido em Lisboa, em 1861, José Cândido Branco Rodrigues faleceu em S. João do Estoril, em 1926.



Imagem da casa antes do incêndio que a atingiu

5 comments:

Paulo Ferrero said...

Belo post, MAM, sendo que gostava de saber - e aqui, faço um apelo aos demais colaboradores e ao público que nos visita - qual é realmente a casa que é vítima de assombrações: se esta se a do castelinho ao lado ... ou serão as duas?

Maria Amorim Morais said...

Obrigada, Paulo. E já agora, se as histórias de assombrações que têm corrido ao longo de sucessivas gerações são também idênticas entre si... ou não. No fundo, também fazem parte da história de Cascais.

Paulo Ferrero said...

Resposta a Cidadania Cascais (*)
(5ªfeira 17 de Julho 2007)
«"Assombrações"

Estou profundamente grato pelo que se refere à memória do meu pai no blogue de 17 de Julho p.p. sobre “Assombrações” de que só ontem tive conhecimento. Quanto à ruína do edifício do Instituto de Cegos, a única culpada é a Misericórdia de Lisboa, a quem interessa dar um destino rendoso àquele espaço, não respeitando a doação.

Eis o Decreto:
Decreto nº12904 – Tendo falecido o fundador do Instituto de Cegos Branco Rodrigues, e convindo impedir que as portas do referido Instituto sejam encerradas por falta de recursos, visto ser um estabelecimento modelar no seu género pelos largos serviços que tem prestado a quem deles tem necessitado:
Em nome da Nação, o Governo da República Portuguesa decreta para valer como lei o seguinte:

Artigo 1º- É a Misericórdia de Lisboa outorgada a aceitar a doação do Instituto de Cegos Branco Rodrigues com todo o material, haveres, legados e dotações que lhe pertencem com o encargo de o continuar a manter e administrar conforme estabelece o artigo 10º dos Estatutos do referido Instituto de Cegos.
Artigo 2º- Fica revogada a legislação em contrário, etc, etc.
Os Ministros de todas as Repartições o façam imprimir, publicar e correr. Dado nos Paços do Governo da República em 16 de Dezembro de 1926.

António Óscar de Fragoso Carmona ( e mais dez Ministros)

Renovo os meus agradecimentos e desejo os maiores êxitos aos Amigos da Marginal.


José Branco Rodrigues

Lisboa, 5 de Novembro de 2007



Anexo:
Cópia de carta enviada à Santa Casa da Misericórdia

Sr Director,
OS DEFICIENTES VISUAIS PORTUGUESES ESTÃO MAIS POBRES


O ano corrente marca o LXXX aniversário da morte de José Cândido Branco Rodrigues, eminente figura no domínio da valorização intelectual dos deficientes visuais. Homem de grande coração e elevado nível socio-cultural defendia o princípio (para ele irrefutável) de que as pessoas com deficiência visual não podem viver recorrendo à mendicidade ou à sombra de familiares ou instituições de caridade, mas sim, precisam de escolarização, educação, formação profissional; precisam de trabalho que lhes garanta o usufruto de uma existência digna não dependente de outrem.
Na sua existência de 65 anos, mais de quatro décadas foram dedicadas à causa da promoção das pessoas com deficiência visual, e do muito que realizou destaca-se a fundação do Instituto de Cegos Branco Rodrigues, em 1901, que, depois de ter estado sediado em Lisboa, se fixa , em 1913, em S. João do Estoril em edifício construído para o efeito em terreno doado por Florinda Leal, proprietária da famosa Quinta da Carreira, na condição de o mesmo retornar à posse da família se, porventura, deixasse de estar ao serviço dos cegos.
Acerca do Homem e dos prosélitos que com ele abraçaram a nobre causa de propiciar a inigualável luz intelectual aos que, privados da visão do mundo circundante de luz e cor, dela tanto careciam, não é nossa intenção agora aqui considerar. O que importa salientar neste momento penoso são, objectivamente, os factos que geram um sentimento de mágoa, de impotência e mesmo de revolta no espírito dos deficientes visuais portugueses que reconhecem ter atingido os patamares de qualidade de vida e cidadania que usufruem, porque nos finais do séc. XIX e primeiro quartel do XX houve um escol de sábios filantropos liderado por Branco Rodrigues que fundou as escolas que até princípios dos anos sessenta foram as únicas a garantir benevolamente uma formação intelectual, para a época de significativo nível, aos que tinham a dita de nelas ingressar.
E que factos são esses que provocam sofrimento, mais pobreza a quantos, desde o início da década de setenta, têm vindo a ser espoliados do património para seu usufruto gerado por beneméritos doadores?

Não pretendendo atribuir culpas a alguém em particular, levantamos apenas questões que no nosso entender são pertinentes, e alertamos, a quem de direito, para realidades nebulosas que carecem de ser clarificadas.
Cerca de 1970, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – que desde 1926 era a proprietária do Instituto de Cegos Branco Rodrigues, por testamento do seu fundador, decide abandonar o edifício, transferindo a escola para um prédio de apartamentos- situado na Parede, Rua de Malange – que fora adquirido à Empresa J. Pimenta, SARL, para nele instalar a entidade que baptizou com o nome de “Instituto de Cegos Branco Rodrigues e Anastácio Gonçalves”. Acresce ainda que, à data, havia o oftalmologista Anastácio Gonçalves deixado em testamento 4.500 contos para serem investidos em projectos de valorização educacional e de habilitação socio- profissional dos deficientes visuais.
Face a este procedimentos impõe-se questionar se as vontades exaradas, tanto em doação como em testamentos, foram respeitadas e se era legítimo que a Santa Casa da Misericórdia continuasse a ser a proprietária de um património cujo usufruto recusava aos seus exclusivos herdeiros, os deficientes visuais portugueses. Além disso, o facto de a escola ter sido transferida para instalações impróprias para o seu normal funcionamento, parece-nos ser indicador de que os 4.500 contos não foram investidos em conformidade com o que determinava o testamento, uma vez que não favoreceu a pressuposta beneficiação educacional para os deficientes visuais, mas, pelo contrário, motivou a sua degradação.
Ponderando a crítica situação de abandono e progressiva demolição do edifício de S. João do Estoril, a ACAPO, lídima defensora dos direitos dos deficientes visuais portugueses, tentou, sem sucesso, negociar com sucessivos Provedores da Misericórdia para que o mesmo lhe fosse confiado para aí instalar um centro polivalente de trabalho, de férias, etc.
Teimosamente (por razões nunca confessadas), ao longo das últimas três décadas, a Santa Casa manteve o abandono e promoveu a degradação (em grande parte a demolição) do edifício em questão, gerando as condições óptimas que tornaram possível o incêndio que, às sete horas do dia 13 de Abril em curso, nele deflagrou e o consumiu durante toda a manhã.
Perante o reprovável facto consumado, os beneficiários da obra gerada pelo tiflopedagogo José Cândido Branco Rodrigues, que foi sacrificada pelo pasto das chamas, insurgem-se contra a espoliação de que têm sido objecto. Após a transferência da escola para a Parede. Não deixaram rasto a dezena e meia de pianos, a vintena de violinos, os saxofones, clarinetes e trompetes, os violoncelos e um contrabaixo, etc.; desapareceram, como que por encanto, todos os instrumentos de ensino(pautas e máquinas Braille, réguas Ballu, cubaritmos e outros objectos escolares específicos ou não); sumiram-se colecções de mapas em relevo, o instrumental para o ensino da Matemática, da Física, da Zoologia; a biblioteca, que contava, seguramente, com mais de quatro mil volumes conheceu subitamente a sua diáspora. Todo este património que foi construído por mecenas, copistas voluntários e por alunos e funcionários, não pode ser esquecido, no momento em que está à vista a meta que desde há muito se adivinha.

Isidro E. Rodrigues – Assessor Principal Bibliotecário e Documentalista
Renato Luís de Espada- Professor
Claudino Arieira Pinto- Técnico Superior
José Fernandes da Silva- Professor
Emílio Caetano Serra- Professor
Altino da Conceição Santos- Professor
José Luís de Almeida- Técnico Profissional
Fernando Dias Henriques- Técnico Brailógrafo»



(*) Transcrição de email recebido na nossa caixa do correio.

MnelVP said...

Eu sempre achei que o assombrado era o castelinho... ele esteve várias vezes seguidas à venda e falava-se que a causa era o estar assombrado.
Mitos quase-urbanos ?

PS: muito obrigado por partilharem esta história tão interessante.

Anonymous said...

Se é assombrada ou não pouco importa., importa sim analisar todo um historico de pilhagens que ao longo destes anos tem sido alvo todas as doações de beneméritos.

Ao que parece foi facil expoliar todo um patrimonio e deixar ao abandono estas instalações até que apareça alguém que pretenda uma mansão na linha e aproveite o terreno pagando à misericórdia "mais algum" que possa encher o bolsos de algum director ou gestor de património.

De facto como português é ultrajante ler estes relatos e verificar que afinal nada mudou ao longo de todos estes anos, a corrupção os ladrões e o oportunismo estão instituidos.